Por Prof. Isabel
Sá-Correia, in Jornal i
A crise de saúde
pública provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 veio criar uma consciência
clara da nossa vulnerabilidade, mas também da necessidade de conhecimento
científico, de especialistas, de confiar em dados científicos. Veio mostrar com
clareza a necessidade de os Governos prestarem mais atenção à importância do
conhecimento científico e às advertências dos cientistas, para informarem as
suas decisões políticas. Gostaria de acreditar que este espírito se manterá
para além da crise da covid-19, até porque há muito que havia alertas de
cientistas, especialistas em saúde e membros ativos da comunidade internacional
para a inevitabilidade de uma pandemia global com esta escala. E aqui está o
novo coronavírus! E continuam os alertas para uma outra pandemia pós-SARS-CoV-2
e para a necessidade de preparar, desde já, a resposta.
Mas qual é a
razão para esses alertas que já mostraram merecer crédito? Vários estudos
científicos têm vindo a estabelecer uma correlação entre a desflorestação e o
aumento do risco de zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e
o ser humano e que podem ser causadas por vírus, mas também por bactérias,
parasitas e fungos). A destruição continuada de muitos milhões de hectares de
floresta através de cortes e queimadas, com o objetivo de criar terra para
culturas agrícolas, mineração e exploração imobiliária, tem conduzido a uma
deslocação das espécies selvagens, aproximando-as umas das outras e dos
humanos, aumentando assim a nossa vulnerabilidade a novas doenças infecciosas.
No caso concreto da covid-19, apesar de ser pouco provável que os morcegos
hospedeiros de coronavírus transfiram os vírus para outros animais, quando os
habitats naturais são destruídos, a probabilidade de existir esse contacto e de
um vírus saltar de uma espécie para outra aumenta. O comércio de vida selvagem
vem aumentar essa probabilidade. As frequentes viagens de avião e os
aglomerados urbanos facilitam o rápido espalhar de epidemias. Preservar o meio
ambiente mantendo ecossistemas saudáveis e a biodiversidade é, pois, também uma
forma de proteger a nossa saúde. Poderá a covid-19 vir a catalisar estilos de
vida mais sustentáveis e abrir caminho à transição urgente para a
sustentabilidade socioambiental?
A pandemia de
covid-19 vem reforçar a noção da importância da bioeconomia na construção da
futura economia global sustentável, de acordo com os objetivos declarados das
agendas internacionais, em particular a da Comissão Europeia. A bioeconomia
caracteriza-se pela produção e uso de recursos biológicos renováveis e por
atividades económicas que envolvem a valorização de resíduos orgânicos para
produção de biocombustíveis, produtos químicos de base e materiais, a produção
de alimentos e outros bioprodutos de elevado valor e a recuperação ambiental e
de ecossistemas saudáveis. E no caminho para a implementação de uma bioeconomia
sustentável, o papel dos microrganismos (os bons!) é essencial. Essa
reorientação do padrão de produção permite reduzir a dependência de recursos
fósseis e implementar uma economia circular em que, idealmente, todos os
elementos usados na criação de um produto são reutilizados em vez de
rejeitados. Poderá fortalecer uma saudável ligação entre economia, sociedade e
meio ambiente e dar resposta aos principais desafios para o futuro do planeta,
que continuam a ser a produção sustentável de alimentos e energia e a
conservação do meio ambiente.
Mas será que a
reativação económica e as políticas públicas em tempo de covid-19 são
compatíveis com uma agenda ambiental? Após a crise financeira global e durante
esta pandemia, que interrompeu as nossas atividades e congelou intenções de
desenvolvimento em todo o mundo, será este o momento apropriado para falar da
implementação de uma bioeconomia? Tendo a redução das necessidades energéticas levado
ao colapso do preço do petróleo, no curto prazo não será fácil dar continuidade
ao caminho já iniciado e isso poderá atrasar a transição energética, já que os
combustíveis alternativos surgirão como menos competitivos e os investidores
estarão ainda menos disponíveis para investir em tecnologias emergentes.
Contudo, há que não esquecer que as taxas de carbono também pesam no preço do
petróleo. Persistir num modelo falido levaria ao prolongamento de práticas e
indústrias insustentáveis e ao desvio do financiamento ao necessário “acordo
verde” global. Há, pois, que investir na natureza da recuperação da crise da
covid-19 de modo a que não continue a ser mais do mesmo. E o necessário aumento
sustentável da produtividade necessita de uma política ambiciosa de inovação, e
esta assenta na investigação e desenvolvimento.
Durante a crise
da covid-19, a ciência e o conhecimento científico têm estado no centro das
atenções em todo o mundo. Contudo, os cientistas temem que o seu impacto na
economia afete profundamente o financiamento da investigação científica. Os
recursos alocados à investigação para combater a covid-19, embora constituam a
resposta adequada a esta nova prioridade, podem vir a traduzir-se ainda em
menos recursos disponíveis para investigação de excelência em outras áreas.
Mais tarde ou mais cedo, esta pandemia vai deixar de estar no centro das
atenções. É difícil e perigoso estabelecer, conforme as conjunturas, tópicos
prioritários rígidos para a investigação científica a ser financiada. A investigação
científica é o alicerce e a alavanca do desenvolvimento tecnológico, pois
permite realizar a formação avançada de investigadores bem preparados para
ingressar na indústria ou no mercado de trabalho, no geral. É um investimento
estratégico, pois é a melhor forma de capacitar um país, podendo mesmo
conduzir, de forma inesperada, a descobertas revolucionárias. Mas será que não
é possível e importante definir tópicos prioritários e podar tudo o resto? Ora
reparem neste exemplo paradigmático. Em 2016 foi atribuído a Yoshinori Ohsumi o
Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina pelo seu trabalho inovador, metódico e
de uma vida sobre um processo biológico básico, a autofagia. Para tal, usou a
levedura que produz o vinho, a cerveja, o pão como um simples modelo experimental
para decifrar este processo essencial que ocorre de forma semelhante em
humanos. Durante a conferência de imprensa do Nobel, o laureado lembrou que,
quando iniciou os estudos premiados, não se fazia a menor ideia de que a
autofagia viria a ser associada a doenças como o cancro, as neurodegenerativas,
a diabetes tipo 2, ou à longevidade, e que, por essa razão, os seus estudos na
humilde levedura viriam a ter o impacto que entretanto tiveram e o
reconhecimento de um Nobel. É essa a natureza da investigação fundamental, que
se pode desenvolver de formas não previsíveis à partida e ter um imenso impacto
e trazer elevados benefícios para a sociedade. Não deixemos morrer ou
enfraquecer a investigação de qualidade em todos os domínios científicos!
Em tempo de
covid-19, continua cada vez mais atual a visão de Mariano Gago relativamente ao
conhecimento científico: “Sem cultura científica mínima são escassas as
oportunidades de cidadania autêntica, de construir ou participar nas escolhas
de sociedade (...)”.
Professora
catedrática de Ciências Biológicas do Instituto Superior Técnico, Universidade
de Lisboa Presidente da Sociedade Portuguesa de Microbiologia
Poderá consultar
o artigo em: https://ionline.sapo.pt/artigo/697914/o-conhecimento-cientifico-em-tempo-de-covid-19-e-para-alem-deste?seccao=Opini%C3%A3o
31-05-2023